sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A avaliação dos sistemas educativos

No último post aqui publicado, referi que os modelos pós-burocráticos, pela multiplicidade de atores, encerram em si uma multirregulação, sendo que Barroso (2005b) considera a existência de 3 níveis: transnacional, nacional e micro-regulação (p.67), com vista ao controlo de resultados e de procedimentos coexistente com um certo grau de autonomia administrativa e pedagógica. 

Segundo o autor, a regulação transnacional consiste no conjunto de normas, discursos e instrumentos que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consulta internacionais, no domínio da educação e que resultam, por vezes, de estruturas supranacionais como a União Europeia (p.68). Quanto à regulação nacional, entende-se como o modo como as autoridades públicas (…) exercem a coordenação, o controlo e a influência sobre o sistema educativo, orientando através de normas, injunções e constrangimentos o contexto da ação dos diferentes atores sociais e seus resultados. (idem, p.69) Já a microrregulação pode ser definida como o processo de coordenação da ação dos atores no terreno que resulta do confronto, interação, negociação ou compromisso de diferentes interesses, lógicas, racionalidades e estratégias em presença quer, numa perspetiva vertical, entre administradores e administrados, quer numa perspetiva horizontal, entre os diferentes ocupantes dum mesmo espaço de interdependência (intra e inter organizacional) – escolas, territórios educativos, municípios, etc. (idem, pp.70-71). 

Considerando o contexto educativo atual, e alicerçados num olhar (também) empírico, creio podermos afirmar que a regulação se encontra intimamente relacionada com os processos de avaliação, constituindo estes atos reguladores dos sistemas educativos. De facto, a avaliação, enquanto mecanismo/instrumento de aperfeiçoamento e de melhoria com vista ao desenvolvimento das organizações, tem vindo a assumir, em todas as áreas, inclusive ao nível das políticas públicas, uma ênfase inegável. A educação não constitui exceção a esta generalização, quer no cenário europeu, em geral, quer em Portugal, em particular. A crescente descentralização das políticas educativas na Europa conducentes a uma maior autonomia das escolas faz com que, por um lado, as organizações educativas/escolas sintam necessidade de conhecer as suas fragilidades e pontos fortes, ou seja, o seu estado ao nível do funcionamento, sendo que a avaliação pode contribuir sobremaneira para a melhoria do funcionamento da organização, ou seja para o desenvolvimento da qualidade dos serviços prestados (Chainho e Saragoça, 2014: p.27). Por outro lado, como nos diz Roggero (2002), no quadro ideológico das duas últimas décadas, a avaliação apareceu como uma exigência conduzida pela sociedade ao sistema educativo (p.38) numa lógica de accountability e em conformidade com o New Public Management, assentando a mesma em três imperativos da nova governança: o sector público deve fazer prova da sua eficácia; a comunidade tem o direito de controlar a utilização dos fundos públicos; os utentes têm direito à informação (Demailly et al, 1998:75-76) (Simões, 2010: p.25). 

Assim, em nome da eficácia e da concorrência, as autoridades políticas nacionais instalaram procedimentos de avaliação em seus sistemas educativos, tornando-se evidente a transposição e domínio da lógica do consumidor e do interesse privado para o domínio público e a substituição do utente pelo cliente (Roggero, 2002: p.33), o chamado neoliberalismo educativo, com a tentativa de criação dos mercados ou quase-mercados educativos de que nos fala Barroso (2005a) e que, em última instância, se afiguram como ameaça à igualdade e à equidade na educação. 

Voltando à questão da avaliação dos sistemas educativos nesta Europa “unida na diversidade”, diz-nos Roggero (2002) que se verificam algumas evoluções comuns, como o desenvolvimento da pré-escolarização, o aumento e a feminilização da população estudantil, o envelhecimento do corpo docente, o aumento médio das despesas com educação, a autonomização crescente dos estabelecimentos, a integração das tecnologias da informação nas práticas pedagógicas e a generalização da avaliação. (p.32) Contudo, a forma e modalidade com que esta se concretiza estará sempre relacionada com a especificidade de cada sistema. Ainda assim, o autor aponta três modelos de sistemas de avaliação educativa: o inglês, o francês e o finlandês, apesar de reconhecer que os três exemplos não bastariam para não bastariam para representar a totalidade dos sistemas de avaliação da União Européia, sendo que as suas virtudes residem no fato de que eles encarnam modelos de avaliação típicos tanto de suas modalidades quanto de sua inspiração.(p.37). Neste ponto, e tendo em conta o referido acima acerca do neoliberalismo educativo, gostaria de destacar o sistema finlandês, com o qual confesso identificar-me, e que se caracteriza pelo reconhecimento da igualdade como objetivo essencial do sistema educativo. Em outros termos, a pesquisa da eficácia da escola se julga também pela capacidade de reduzir as desigualdades sociais no acesso ao saber. (idem: p.36) 

Neste contexto, relembro os três níveis de regulação propostos por Barroso (2005b), referidos logo no início desta minha intervenção: transnacional, nacional e local, consubstanciados (também) em processos avaliativos assentes, sobretudo, em resultados (foco no produto e não no processo nem no contexto), pese embora alguns integrem variáveis contextuais relacionadas com indicadores demográficos, socioeconómicos e educacionais. 

Assim, não posso deixar de concordar com Roggero, quando este afirma: Questionado sobre as origens da economia monetária, Simmel (1987) escreveu que a faculdade de cálculo é a essência do mundo moderno – a avaliação como é geralmente praticada hoje na Europa ilustra plenamente esta asserção. Pelos indicadores essencialmente quantitativos, orienta-se a ação educativa para uma racionalização, permitindo maior eficácia. (p.39). Senão vejamos...

Creio ser possível apontar como instrumento de avaliação ao nível transnacional aquele que é considerado o mais poderoso do mundo: o PISA. Andreas Schleicher advoga que o teste possibilita “uma consciencialização dos países sobre as performances dos seus alunos relativamente aos alunos de outros países, assim como uma melhor perceção do sucesso/insucesso dos seus sistemas educativos para responderem às disparidades sociais”, referindo a “equidade na distribuição das oportunidades de aprendizagem”. Admitindo-se que assim é, a verdade é que o próprio Schleicher concede que “o teste PIZA é um instrumento da OCDE que serve para avaliar os sistemas educativos de diferentes países em redor do mundo, comparando-os entre si, de modo a alcançar-se uma compreensão mais aprofundada dos fatores e contextos que fazem com que alguns países se destaquem de outros, por apresentarem melhores resultados no que diz respeito ao desempenho dos seus estudantes na leitura, na matemática e nas ciências, assim como relativamente às competências necessárias aos seus futuros laborais.” (sublinhado meu) 
E eu questiono:

1) Como se podem estabelecer metas comuns para países que implicam realidades tão distintas, conjunturas tão diferentes, contextos culturais e económicos tão díspares? 

2) Passarão as “competências laborais” apenas pela leitura, pela matemática e pelas ciências? E as áreas das expressões? E a cidadania? E os valores? E as soft skills

Embora considere o PISA e os seus resultados interessantes, não posso evitar de o considerar algo redutor, pelo foco em variáveis mensuráveis limitadas. 

No que diz respeito ao nível nacional, surge igualmente a ênfase nos números, nos indicadores quantitativos. Relembro os exames nacionais, os rankings das escolas, as provas de aferição, a avaliação externa… independentemente das NUTS e das variáveis de contexto que, embora possam aproximar-se, jamais serão idênticas! 

Relativamente ao nível local, destaco o processo de avaliação das escolas, vulgo autoavaliação. Menos numérico, implica uma autorregulação alicerçada numa reflexão que visa a mudança, a melhoria sustentada, a superação dos pontos fracos detectados (Chainho e Saragoça, 2014:p.33) através da implementação de práticas e estratégias alinhadas com os objetivos a alcançar. 

Assim sendo, termino com um aplauso a Roggero (2002) quando este afirma que: Considerando o sistema educativo ou uma organização educativa como um sistema complexo, (…) tomamos consciência de que ele depende de sua história (re), dos relacionamentos com seu meio ambiente (eco) e de sua identidade interna (auto). Toda ação de avaliação deveria, desde já, levar em conta essas dimensões essenciais que não saberíamos avaliar unicamente por indicadores de performance. (p.43)

Referências bibliográficas:
Barroso, J. (2005a). "O Estado, a Educação e a Regulação das Políticas Públicas", in Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 92, pp. 725-751, Especial Outubro.

Barroso, J. (2005b). Políticas Educativas e Organização Escolar. Lisboa, Universidade Aberta.

Chainho, C., & Saragoça, J. (2014). Avaliação da Qualidade das Escolas: Mecanismos de Regulação e Lógicas de Ação dos Atores Escolares. In Atas do IV Encontro de Tróia Qualidade, Investigação e Desenvolvimento, pp. 27-39 http://hdl.handle.net/10174/12577

Roggero, P. (2002). "Avaliação dos sistemas educativos nos países da União Europeia: de uma necessidade problemática a uma prática complexa desejável", in EccoS Rev. Cient. nº 2, v. 4, pp.31-46. São Paulo: UNINOVE.

Simões, G. (2010). Auto-avaliação da escola: regulação de conformidade e regulação de emancipação. Tese de Doutoramento. Lisboa: U. Lisboa - Instituto de Educação. http://hdl.handle.net/10451/3067


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