sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Aprendizagem ao Longo da Vida


O século XX foi palco de uma série de eventos históricos, sociais, económicos e culturais que, aliados ao surgimento da “autoestrada da informação” e ao desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, conduziram ao fenómeno da chamada “globalização”. Abriu-se caminho à “aldeia global” do século XXI, à sociedade em rede, à sociedade da informação e do conhecimento, de fronteiras esbatidas e conexões infinitas.

Este fenómeno teve (e tem!), indubitável e inevitavelmente, repercussões e implicações na área da educação e formação. As mudanças vertiginosas em várias áreas, sobretudo ao nível da tecnologia, desenham um mundo metamórfico e imprevisível, que obriga cada um de nós a enfrentar e superar, a cada dia, novos desafios que exigem novas competências, novos conhecimentos, novos saberes, num estado de permanente (re)adaptabilidade, sobretudo no que à esfera laboral diz respeito. O mundo do trabalho, tal como o conhecíamos no passado, chegou ao fim. A noção de outrora de “emprego para a vida” acabou. Tornou-se/torna-se, assim, imperativo que os sistemas educativos dêem resposta a este cenário, abraçando um paradigma que prepare os indivíduos para a nova realidade de competição global, formando cidadãos competentes (a vários níveis), informados, ativos e participativos.

Com esta consciência, no início do novo milénio é aprovado, pelo Conselho Europeu em Lisboa (março de 2000), um plano de desenvolvimento estratégico para a década seguinte, conhecido como a Estratégia de Lisboa. Com o objetivo estratégico de “tornar-se na economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social”(*1), assegurou implicações em termos de educação e formação, nomeadamente no toca ao “reforço da importância atribuída a esta área e ao seu papel no desenvolvimento global das sociedades” e “à necessidade de adaptar os sistemas de educação e formação na Europa às exigências de uma sociedade baseada no conhecimento”. Delinearam-se, assim, 3 objetivos estratégicos: “aumentar a qualidade e eficácia dos sistemas dos sistemas de educação e formação na EU; facilitar o acesso de todos aos sistemas de educação e formação; abrir ao mundo exterior os sistemas de educação e de formação(*2), os quais visavam permitir o desenvolvimento e aquisição dos conhecimentos, competências e aptidões essenciais não só ao nível da formação inicial, mas ao longo da vida.

Alicerçada nestes objetivos, surge a Recomendação do Parlamento Europeu e do Conselho de 18 de Dezembro de 2006 sobre as competências essenciais para a aprendizagem ao longo da vida (2006/962/CE), onde é recomendado aos estados membros da UE que “desenvolvam competências essenciais para todos no contexto das respectivas estratégias de aprendizagem ao longo da vida, nomeadamente no âmbito das suas estratégias para alcançar uma literacia universal, e usem o documento «Competências essenciais para a aprendizagem ao longo da vida (…) como um instrumento de referência(…)”.(*3)

As Competências-chave para a Aprendizagem ao Longo da Vida – Quadro de Referência Europeu constitui, assim, um anexo à supracitada Recomendação, publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 30 de Dezembro 2006/L394, “sendo definidas aqui como uma combinação de conhecimentos, aptidões e atitudes adequadas ao contexto. As competências essenciais são aquelas que são necessárias a todas as pessoas para a realização e o desenvolvimento pessoais, para exercerem uma cidadania activa, para a inclusão social e para o emprego.” (*4) São elas: 1) Comunicação na língua materna; 2) Comunicação em línguas estrangeiras; 3) Competência matemática e competências básicas em ciências e tecnologia; 4) Competência digital; 5) Aprender a aprender; 6) Competências sociais e cívicas; 7) Espírito de iniciativa e espírito empresarial; e 8) Sensibilidade e expressão culturais, sendo que todas elas assumem a mesma importância e muitas se encontram interligadas. Refira-se a semelhança com as áreas de competência elencadas no Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória.

Neste âmbito, a Estratégia de Lisboa, e o papel fulcral que a aprendizagem ao longo da vida assumiu como forma de construir uma Europa do conhecimento, impulsionou um maior financiamento de programas de mobilidade (2007 a 2013): Comenius (para escolas), Erasmus (para o ensino superior), Leonardo da Vinci (para estágios profissionais) e Grundtvig (para educação de adultos). O reforço da dimensão europeia e internacional da educação encontra-se subjacente a todos eles, numa lógica de promoção dos valores europeus de inclusão, de igualdade e equidade, de integração social, de multiculturalidade e respeito pela diversidade e de pertença a uma Europa que se perspetiva capaz de incentivar a criatividade, o espírito empreendedor e a inovação.

Atualmente estes programas foram substituídos por Ações e Atividades existentes dentro do Programa Erasmus+ (https://www.erasmusmais.pt/), mas os objetivos permanecem os mesmos, continuando a proporcionar aos jovens e adultos experiências e vivências inesquecíveis e enriquecedoras, bem como oportunidades de descoberta do(s) outro(s) e de si próprios.

Enquanto coordenadora de um Clube Europeu durante alguns anos, e enquanto professora de Inglês, não consigo evitar um entusiasmo especial por estes programas. Acredito verdadeiramente nos valores de uma Europa unida na diversidade, fundamentais para a construção de uma sociedade (global) mais justa, mais democrática e mais livre, e não se passa um ano letivo que não trabalhe com os meus alunos com vista a transmiti-los. Quanto à língua inglesa, idioma privilegiado na comunicação entre os países parceiros, considero que é uma forma excelente de desenvolver a competência comunicativa, em contexto real. No entanto, e por circunstâncias da vida, nunca tive qualquer experiência em programas de mobilidade, embora tivessem surgido diversas oportunidades que, por motivos vários, me vi obrigada a recusar. No entanto, há alguns anos que trabalhos em projetos eTwinning, não constituindo este ano letivo exceção.

Voltando à questão da aprendizagem ao longo da vida, penso ainda ser importante referir o Programa Operacional Capital Humano (POCH), anterior POPH, aprovado pela decisão da Comissão Europeia de 12 de dezembro de 2014, e revisto pela Decisão de Execução da Comissão Europeia de 29 de Novembro de 2018, o qual visa contribuir para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo e para a coesão económica, social e territorial, no âmbito das metas da Europa 2020. O cumprimento destas assenta na promoção do sucesso e a redução do abandono escolar, na melhoria da empregabilidade através do ajustamento das ofertas com as necessidades do mercado de trabalho, no aumento da atratividade e do número de diplomados do ensino superior, na melhoria das qualificações da população adulta e na promoção da qualidade e da regulação do sistema de educação e formação.(*5)

O investimento na ALV por parte da EU afigura-se, pois, como irrefutável, assente na premissa de uma educação de qualidade para todos: crianças, jovens e adultos. “Burro velho não aprende línguas”, dizem. Em Portugal, na Europa, no mundo do século XXI, não há ditado que faça menos sentido do que este! Façamos a apologia do douto Sócrates: “Só sei que nada sei!”, e que nunca pensemos que a educação se circunscreve a uma escola ou a uma universidade. Que nunca percamos a vontade de conhecer, de aprender, de descobrir, que sintamos sempre essa necessidade e o prazer de a satisfazer, na busca incessante por formação (formal ou não-formal), por conhecimento (“que não ocupa lugar”) e pelo desenvolvimento continuado das nossas competências e aptidões.





O Paradoxo da Educação

O paradoxo que testemunhamos hoje no que à educação diz respeito remete-me, uma vez mais, para Benedito (2007), que afirma:

Bittery (1993), considera que o taylorismo constitui uma das marcas dominantes em vários aspectos dos modos de organização da escola, como sejam, por exemplo, a existência de uma hierarquia clara, em que directores e professores com responsabilidades directivas comparam-se aos gestores industriais, os professores aos trabalhadores e os alunos a matéria-prima a ser processada (…) Martín-Moreno (1989) apresenta onze características que assemelham a organização escolar ao tipo taylorista de organização: a uniformidade curricular, as metodologias dirigidas para o ensino colectivo, os agrupamentos rígidos de alunos, o posicionamento insular dos professores, a escassez de recursos materiais, a uniformidade na organização dos espaços educativos, a uniformidade de horários, a avaliação descontínua, a disciplina formal, a direcção unipessoal e as insuficientes relações com a comunidade. (p.13)

Creio que todos nós associamos grande parte das nossas escolas a esta caracterização, a qual vai ao encontro do referido por Alvin e Heidi Toddler quando comparam as escolas a fábricas, bem como ao ensino público criticado por Ken Robinson no vídeo Changing Paradigms.
Robinson afirma, e creio que com toda a legitimidade, que as escolas vão rumo ao futuro fazendo o que faziam no passado, existindo um claro desajuste entre o sistema educativo e a época em que vivemos. Continua a existir uma educação modelada de acordo com os interesses da industrialização, estruturada à sua imagem, com escolas organizadas em filas de fábrica, toques de campainha, disciplinas “engavetadas”, um sistema organizado por idades, um currículo e uma avaliação estandardizada e uma mentalidade de linha de produção. É um sistema mecanicista, obsoleto, tal como afirmam Alvin e Heidi Toffler, que prepara as pessoas para o ontem e não para o amanhã.
Vivemos uma época de transformações vertiginosas e, sobretudo, de imprevisibilidade. Como é que podemos educar os nossos alunos à luz de um sistema educativo delineado, concebido e estruturado com base na cultura intelectual do iluminismo e no contexto económico ditado pela revolução industrial? Como pode a escola perpetuar o mito dos bons e maus alunos, dos que são inteligentes e dos que não o são? Dos que memorização e reproduzem e dos que não são capazes de o fazer? Como pode a escola manter “a formatação” em pleno século XXI? Tanto se tem falado em inclusão, em igualdade, em equidade. Contas feitas, dita a experiência que a resistência à mudança é mais do que muita…

As consequências deste sistema que teima em manter-se são de uma gravidade imensa. Por um lado, crianças e jovens entediados, a quem a escola não diz nada. Para que é que isto serve? Tal como eu, creio que também vocês, colegas de profissão, já ouviram esta interrogação milhares de vezes… Por outro lado, alunos demasiado estimulados, incapazes de manter o foco, muitas vezes chamados de “indisciplinados” ou com “défice de atenção/concentração”: a epidemia moderna, como lhe chama Robinson, para a qual a panaceia encontrada é, com frequência, uma receita de Ritalina. No caso português, e segundo Caliman & Domitrovic (2017), Embora não haja estudos sobre a prevalência do PHDA em Portugal, dados mais recentes, fornecidos pela consultora QuintilesIMS e pelo Infarmed, demonstram que também em Portugal o consumo deste medicamento tem vindo a crescer. Em 2016, mais de 270 mil embalagens foram prescritas nos serviços públicos de saúde, mais do dobro do que fora registrado em 2010, que se cifrou nos 133 mil (Margato, 2017). Estes números levaram, no ano passado, o Concelho Nacional de Educação a alertar para a medicação utilizada para supostos problemas de hiperatividade e déficit de atenção (Santos, 2017).

Voltando a Robinson, este afirma, e eu concordo, que não devíamos adormecer os nossos alunos, mas sim despertá-los para aquilo que têm dentro de si! Ajudá-los a preservar o pensamento divergente que todos possuem em criança, criar ambientes de aprendizagem colaborativa, deixá-los descobrir e orientá-los nesse percurso. Digo muitas vezes aos meus alunos que todos eles possuem um talento escondido e que se calhar apenas ainda não o descobriram…

Afinal, e voltando um pouco atrás, o que é um bom aluno? Para a escola tradicional, é o que está sentado na sua mesa, sempre atento, sem conversar com o colega do lado, é obediente, cumpre todas as regras e tem boas notas nos testes e na pauta. Para o mundo do trabalho, o “bom profissional” é muito mais do que isso: é alguém dotado de conhecimentos, sim, mas também terá de mostrar dinamismo, capacidade de comunicação, autonomia, pensamento crítico, criatividade, espírito de iniciativa e capacidade para trabalhar em equipa (cooperação/colaboração). Um cidadão revelador de um desenvolvimento pleno, integral, holístico, fruto de uma educação que se assuma como um processo contínuo de desenvolvimento tanto das pessoas como das sociedades (Delors et al. 1999:11) (…) que assenta em quatro pilares: aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer e aprender a viver juntos. (Gaspar, 2005: p.357) De facto, segundo esta autora, aos sistemas educativos é atribuída uma das mais importantes funções sociais que é a de promover a cidadania formando cidadãos, na plenitude deste conceito. (idem, p.360)

Importa, pois, não apenas “ensinar”, que acentua a transmissão de saberes, revela a preocupação com a aquisição de conhecimentos, mas “educar”, que tem um sentido mais abrangente pois inclui o prestar atenção ao ensino e à aprendizagem e privilegia não só a aquisição de saberes mas também a aquisição e o desenvolvimento de aptidões e competências. (Idem, p.356-57)

Jean Piaget afirmou que o principal objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas novas e não simplesmente repetir o que outras gerações fizeram. Alvin e Heidi Toddler consideram que, para tal, o sistema educativo tem de ser substituído e não transformado, advogando uma perspetiva radical que defende uma rutura completa com o atual sistema educativo vigente. Confesso que esta posição me inquieta um pouco pela sua natureza que roça o fundamentalismo... Não creio que tudo esteja “errado” nas escolas. O conhecimento é importante! A memorização é importante! Tentem aprender uma língua estrangeira sem ela, por exemplo… Se calhar, por vezes, um momento expositivo faz falta em sala de aula, para dotar os nossos alunos das ferramentas necessárias à fase seguinte...

A questão é que o sistema educativo não pode alienar-se da sociedade, tendo sempre de surgir alinhado com a realidade do tempo. De facto, tal como nos diz Gaspar (2005), Os sistemas dão vida à sociedade pelo que estarão sujeitos à dinâmica da mesma (…) Se cada sistema viver exclusivamente em torno de si próprio, ele está condenado ao fracasso e contribui para o enfraquecimento da sociedade. É da cadeia dos sistemas, sobretudo da sua interacção, que resulta o modelo de sociedade. (p. 356).

Assim, e tendo em conta que uma das grandes características do nosso século assenta na tecnologia digital, não podemos construir um sistema educativo que a ela se alheie. É frequente fazerem ouvir-se vozes contra as TIC em diversos contextos escolares: não à utilização dos smartphones em sala de aula, não à rentabilização das redes sociais, não aos computadores, aos tablets e à utilização de aplicações, inibidores (segundo afirmam) do desenvolvimento de outras competências. Como se a utilização das TIC nas escolas fosse castradora do uso de outros materiais/recursos. Como se não fossem apenas mais um aliado, poderoso é certo, enquanto ferramentas na promoção da inclusão e da equidade e do processo de aprendizagem dos nossos alunos.

De facto, segundo Porto e Moreira (2017), a análise de ambientes e de ecossistemas digitais de aprendizagem permite-nos encarar a educação no ciberespaço como aberta, flexível e inclusiva. Aberta porque permite-nos ampliar a aprendizagem em larga escala, recorrendo para o efeito a recursos educativos abertos, que incluem materiais, software e aplicativos com fins educacionais e com licenças abertas. Flexível, porque a aprendizagem realiza-se com dispositivos móveis e recursos integrados e distribuídos, que permitem que esta ocorra a qualquer hora e em qualquer com smartphones, tablets ou laptops. E inclusiva, porque as redes sociais têm-se assumido como espaços de aprendizagem informal inclusivos onde todo os cidadãos, têm a possibilidade de reutilizar, reconstruir e redistribuir conhecimento. (p.15)

O grande desafio será, pois, a criação de um sistema educativo que permita o desenvolvimento dos conhecimentos, capacidades e atitudes necessárias para que cada criança de hoje, que será o adulto de amanhã, possa responder aos desafios da sociedade atual.

Benedito, N. (2007). "Modelos de Organização dos Sistemas Educativos", in Centralização de Sistemas Educativos e Autonomia dos Actores Organizacionais. Processos colectivos de interpretação das orientações centrais (Tese de Doutoramento), pp. 50-97. Braga: Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho. 
Disponível em http://educar.files.wordpress.com/2008/08/centalsisteduc.pdf

Caliman, L.V. & Domitrovic, N. (2017). Geração Ritalina e a otimização da atenção: notas preliminares. Coimbra: Centro de Estudos Sociais. 

Gaspar, M. (2005). Sistemas Educativos: princípios orientadores. Lisboa: Universidade Aberta.

Moreira, J. A. & Porto, C. (2017). Educação no Ciberespaço. Novas Configurações, Convergências e Conexões. Santo Tirso: WhIteBooks